Estamos entorpecidos, narcotizados moral e espiritualmente, tanto que dá sono só de ler essas palavrinhas, como se a mera menção despertasse um fiscal chato com a única finalidade de estragar prazeres.

Acho que todos conhecem a história de Narciso, não? Apaixonado por suas selfies, nada mais fez de sua vida senão contemplar-se no Instagram, até nele mergulhar e morrer. Dizem que isso é mito e muito antigo, coisa de grego. Só se for a parte do mergulhar e morrer (se bem que…) porque, no mais, Narciso segue vivo, firme e forte, com o perfil ativo no Facebook e em todo canto da internet. Narciso, hoje, é legião.

Uma de suas características principais, segundo o filósofo Louis Lavelle, que escreveu um livro a respeito, do qual tomei de empréstimo o título acima, é procurar mais aquilo que o agrada do que aquilo que ele é. Cientistas sociais, psicólogos, especialistas de toda ordem, estudam, pesquisam, analisam, teorizam, discutem, há tempo o narcisismo e as redes sociais, terreno fértil para sua propagação, e seus estudos costumam demonstrar que muitos tendem a se sentir mal, tristes, sozinhos, depressivos, invejosos, quando veem os amigos nas redes sociais publicando fotos de festas, viagens, férias, e por aí vai. Claro, naquele momento, é mais agradável ser eles do que eu.

Parece coisa de adolescente, e é – Narciso, aliás, tinha 16 anos. Mas hoje em dia a adolescência esticada é um fato, e os 16 anos de Narciso devem equivaler aos 42 anos na atualidade. É uma epidemia, portanto.

Seria o caso de perguntar em que ponto o amor-próprio se torna doença e volta-se contra si mesmo. Mas acredito que quando se torna mania publicar selfies logo que consumado o ato sexual (#AfterSex), ou sua variante a mostrar como ficou seu cabelo depois (#AfterSexHair), ou para mostrar sua roupa e expressão facial quando se está num funeral (#funeral), enfim, quando chegamos a isso, algo me diz que aquele ponto já foi ultrapassado faz tempo e falar de limites seria até interessante, mas tão produtivo quanto analisar o pênalti perdido por Zico na Copa de 1986.

Na verdade, embora quando se fale de narcisismo logo venha à mente vaidade, seu significado tem mais a ver com entorpecimento, que vem da origem grega do seu nome, narkhé. E é essa, parece-me, a marca registrada do narcisismo do nosso tempo, que já se fez antigo e, pelo visto, perdurará bastante. Estamos entorpecidos, narcotizados moral e espiritualmente, tanto que dá sono só de ler essas palavrinhas, como se a mera menção despertasse um fiscal chato com a única finalidade de estragar prazeres. É proibido proibir, e beijinho no ombro a quem discorda.

No fim, o destino de todo Narciso é não ser amado, nem por si mesmo, e é essa dor que entorpecemos com nossa fabricada espontaneidade e rígido controle de qualidade da imagem que passamos aos outros nas redes sociais. Como somos parecidos por lá, já reparou? Além de Narcisos, também somos Eco, a ninfa condenada pela deusa Hera a somente repetir o que os outros diziam, por ser muito tagarela. Ela se apaixonou por Narciso, mas não podendo expressar seu amor, terminou sendo rejeitada, isolando-se do mundo nas montanhas, onde se transformou em rochedo, mas continuando até hoje a ecoar, a repetir palavras que parecem, mas não são suas. Por que mesmo você entrou na onda das selfies?

Publicado no jornal Gazeta do Povo.

Francisco Escorsim, advogado e professor, é coordenador do Instituto de Formação e Educação de Curitiba (IFE).